Assembleia Popular Permanente de Cachoeira do Sul: Mobilidade Urbana e Transporte Público (20/07/2013)

Assembleia Popular Permanente de Cachoeira do Sul, realizada no dia 20 de Julho de 2013, no Bairro Marina. Encontro temático sobre mobilidade urbana e transporte público.

A quem pertence a cidade?

Entendemos a cidade como um organismo vivo em constante mudança e evolução. A cidade não é apenas um aglomerado estático, imune as transformações econômicas, sociais e culturais. Pertencer a uma cidade envolve a apropriação dos significados de viver coletivamente. A cidade também e um ecossistema e deve ser tratada com cuidado, a fim de garantir a qualidade de vida e saúde a população. Em tempos de alta-modernidade, o modelo de mobilidade urbana vive um esgotamento com o uso indiscriminado de automóveis, uma prática que expõe uma visão individualista do mundo, de consumo como meta de vida e que perpetua as estratégias de dominação do grande capital.

Desta forma, nos reunimos hoje para propor uma visão de cidade humanizada que priorize o direito e o acesso a cidade em todas as suas formas de mobilidade. Garantir o acesso a cidade é compreender que o transporte é um bem público, serviço básico essencial assim como a saúde, a educação e a segurança. Tal como esses serviços, fruto de nossos impostos, o transporte deve ser universal, gratuito e de qualidade. Para a efetividade destas demandas exigimos revisão do regime de concessão, transparência na prestação de contas, fiscalização dos serviços e maior controle social.

A cidade que queremos é um espaço humanizado que inclua o acesso a deficientes em todos os órgãos públicos, as estruturas urbanas tais como ruas, calçadas e estabelecimentos comerciais, de forma autônoma. Nosso modelo de cidade e mobilidade urbana é aquele que proporciona o livre direito de ir e vir sem a necessidade de pagar a locomoção para trabalhar, ir à escola, procurar atendimento médico ou simplesmente buscar opções culturais e de lazer.

Defendemos a imediata implantação de um sistema cicloviário, contemplando um plano diretor de mobilidade urbana e projetos que garantam a autonomia de toda população, independente da adoção dos modais de transporte.

Abaixo seguem as reivindicações desta assembleia popular:

  • Ciclovia do trabalhador, já!
  • Instalação de paraciclos e bicicletários públicos em escolas, praças, biblioteca municipal e estabelecimentos comerciais;
  • Projeto de implementação de um calçadão na Rua Sete de Setembro e criação de espaços de lazer;
  • Acessibilidade Universal em órgãos públicos para deficientes;
  • Curso de formação para motoristas profissionais (motoristas de ônibus, taxi, do setor público e privado), de como lidar com os ciclistas.
  • Municipalização do transporte público;
  • Fiscalização do Transporte Público por parte da prefeitura; Cumprimento de rotas, horários e demais termos do contrato. A empresa deve ser multada nos casos onde houverem infrações;
  • Transparência de custos da empresa; publicação de planilha de custos, salários, lucros, etc…
  • Fiscalização da rota do transporte interdistrital, uma vez que as rotas contratadas (licitadas) não está sendo cumpridas;
  • Exigimos respeito dos motoristas com o código de trânsito brasileiro e maior rigor da fiscalização;

Áudio da Assembleia Popular

Your browser does not support the audio element.

Fotos do evento

[Artigo] Tarifa nos transportes coletivos urbanos: uma iniquidade – Por Lúcio Gregori

Einstein dizia que é mais fácil desintegrar um átomo do que um preconceito. Eu não sabia disso quando em 1990 propus a tarifa zero para os transportes coletivos urbanos no município de São Paulo. Era secretário dos transportes no governo da então prefeita Luiza Erundina.

Por ter sido anteriormente secretário de serviços e obras (e portanto responsável pelos contratos de coleta e destino final do lixo), pensei que o pagamento do transporte no ato de sua utilização era injusto e pouco racional em termos de eficiência. Injusto porque os que pagam são os que menos têm condições de arcar com esse custo. Era, e continua sendo, enorme o número dos que andam a pé por não terem condições de pagar a tarifa. Pouco eficiente uma vez que o sistema de cobrança, à época, consumia quase 28% do arrecadado, além de ocupar cerca de quatro lugares por ônibus. A catraca não é somente grande e feia. Pode se constituir também, em um símbolo de humilhação.

O sistema proposto era de pagamento indireto do serviço de transporte coletivo, através de impostos e taxas do município, como no caso dos serviços de educação, saúde, segurança pública, coleta e destinação final do lixo. O nome Tarifa Zero é, na verdade, de fantasia.

A previsão era de que com a adoção da tarifa zero o número de passageiros transportados aumentasse muito, seja por conta daqueles que não podem pagar várias tarifas por dia, como pela migração de parte dos usuários de transportes individuais.

A frota deveria aumentar em 4.000 ônibus. Com a proposta, separava-se radicalmente o custo do serviço da tarifa paga pelo usuário. Cairia por terra o sistema de concessões de serviço para empresas em que a tarifa é a garantia do equilíbrio econômico-financeiro do contrato. Os serviços seriam contratados como todos os demais serviços públicos municipais, como construção de vias e viadutos, aquisição de remédios, equipamentos hospitalares, equipamentos para educação. Seria algo como fretar veículos pagando ao fretador e cobrindo os custos através dos impostos e taxas municipais. Sem nada cobrar do usuário no ato de utilização. Essa modalidade de contratação, no caso dos ônibus, seria denominada “municipalização”.

Com o necessário aumento da frota e a tarifa zero, tornavam-se necessárias novas fontes de recursos através de impostos e taxas. A prefeita propunha à Câmara uma reforma tributária fortemente progressiva, dentro da qual pagaria mais quem tem mais, menos quem tem menos e não pagaria quem não tem, e a constituição de um fundo para financiar a gratuidade. Grandes estabelecimentos, bancos, residências de luxo pagariam mais, e assim por diante. Afinal, a cidade só funciona porque as pessoas nela se deslocam.

Nos debates e reuniões de que participei pude perceber a resistência que se tem em propiciar um sistema mais racional e justo para a mobilidade de todos, independentemente de classe social. A pouca mobilidade física dos usuários de transporte coletivo se traduz, também, em menor mobilidade social. O preconceito aparecia sob a forma de ditos como: “se é ruim pagando, pior se for de graça”, ou “os ônibus vão estar lotados de bêbados e desocupados” ou ainda, “se for de graça haverá vandalismo etc. etc.”

O projeto não pôde ser implantado. A Câmara Municipal sequer votou a necessária reforma tributária e o projeto como um todo. Esse conjunto de preconceitos esconde uma questão política e social muito mais profunda, que se constitui como um paradigma.

Como se dá, exposta de forma simples, sua construção histórica e social?

O início ocorre com a necessidade do não-transporte, quando o ideal para o capital era ter o trabalhador junto ao local do trabalho, caso das vilas industriais ou mesmo das colônias nas fazendas. Com a complexidade decorrente do desenvolvimento, o transporte dos consumidores e da mão de obra para os locais de trabalho passa a ser indispensável. A responsabilidade desse serviço é transferida ao poder público, enquanto ele se transforma, ao mesmo tempo, em novo “negócio”.

A concessão de serviço público é solução de “negócio” para um mercado em que não há como haver concorrência, característico do transporte coletivo. E a tarifa é a garantia do “negócio”.

Como responsabilidade de governo, os transportes coletivos têm na tarifa um preço público. Isso confere ao sistema possibilidades de barganha política. A fixação do preço público da tarifa serve como elemento de manipulação política, para o bem e para o mal. A tarifa se torna, na prática, um “fetiche”. A história dos reajustes de tarifas de transportes urbanos mostra isso claramente, através de variadas manipulações. Ora a depressão do preço, ora os aumentos, sempre em função do momento político, de eleições etc.

Se do lado do capital o transporte coletivo é encarado como “negócio”, os usuários, através do aparato ideológico, também introjetam esse mesmo conceito. O usuário entende que o transporte é um serviço que deve ser pago, e que o seu deslocamento (mobilidade) é de sua inteira responsabilidade. Com isso, esfuma-se que o transporte é, primordialmente, de interesse do produtor, do prestador de serviço, do comércio – do empregador, de forma geral. O usuário não entende o transporte como direito social a ser pago indiretamente, como entende a saúde pública, a segurança pública, a educação pública. Como que para lembrá-lo permanentemente de seu “dever de pagar”, em muitos ônibus da cidade de São Paulo se encontram os seguintes dizeres:

Código Penal

Art. 176 – Tomar refeição em restaurante, alojar-se em hotel ou utilizar-se de meio de transporte sem dispor de recursos para efetuar o pagamento:

Pena – detenção, de 15 (quinze) dias a 2 (dois) meses, ou multa.

É fácil perceber essa introjeção nos momentos de crise dos transportes coletivos, como nos dias de greve. A mídia mostrará usuários se debatendo e disputando os poucos lugares ofertados. Ansiosos para não perder o dia de trabalho ou o acesso a serviços indispensáveis e inadiáveis. Assumindo, assim, a plena responsabilidade por seus deslocamentos. Se a crise perdurar, em breve a mesma mídia dirá da impaciência das indústrias, comércio e serviços pela ausência de seus trabalhadores e consumidores. E assim, a crise dos transportes coletivos fica entendida como um grave problema social.

No entanto a Constituição diz:

Art. 6º – São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma dessa Constituição.

Os mesmos transportes coletivos cuja ausência causa graves problemas sociais não são, no entanto, um direito social.

O usuário do transporte coletivo vê no transporte individual, de preferência o automóvel, a “saída” para a mobilidade. O automóvel é um produto que preenche diversos requisitos em nossa sociedade. São milhares e milhares de pessoas que vivem na dependência desse produto. Ele é estratégico na produção nacional, sobretudo por seus “efeitos para trás”, na enorme cadeia de insumos necessários à sua produção. Acrescente-se a isso os serviços que gravitam em torno de seu consumo, tais como comercialização, manutenção, publicidade, propaganda, combustíveis, empreiteiras de obras públicas de ampliação e reforma de sistemas viários para acomodar mais e mais carros, asfaltamento, construção de viadutos, passagens de nível.

O automóvel também conforma as cidades de tal sorte que estas acabam dependendo cada vez mais de sua utilização. Diante de um sistema de transporte coletivo ruim, insuficiente e caro, o automóvel se torna um sonho de consumo libertador do pesadelo representado pelo ônibus. Mas o automóvel é um forte agressor do meio ambiente e devorador insaciável do espaço urbano. Sua frota polui dezenas de vezes mais que a frota de ônibus e ainda mais que outros modalidades como metrô ou VLTs.

Entendo que a tarifa zero produziria um efeito radical na questão da mobilidade, tornando-a mais racional, ambientalmente mais sustentável e socialmente mais justa. Sua implantação envolve, porém, uma enorme disputa política, tanto no campo ideológico, como no campo econômico-financeiro.

Sucessivos governos no Brasil, em todas as instâncias, têm adotado políticas públicas para o transporte individual por automóvel em detrimento do transporte coletivo. Bilhões e bilhões são gastos na ampliação de vias e na construção de viadutos, enquanto se alega falta de recursos para o subsídio às tarifas e investimentos no transporte coletivo. Isso não se dá por acaso, mas por uma enorme disputa política que envolve diverso interesses.

Em Hasselt, na Bélgica, a “tarifa zero” existe desde 1997. A demanda por transporte coletivo cresceu cerca de 1300% e houve considerável diminuição de investimentos no sistema viário.

Por tudo que se disse nessa síntese da questão é que se afirmou o título deste texto.

Comecemos por reivindicar que o citado artigo da Constituição inclua o transporte coletivo urbano como direito social.

Lucio Gregori é engenheiro e foi Secretário da Secretaria Municipal dos Transportes da cidade de São Paulo, em 1990, na gestão de Luiza Erundina (na época do PT). Quando assumiu a secretaria de Transportes, ele desenvolveu junto com sua equipe e com o apoio da prefeita, a idéia política de um transporte coletivo como direito, de acesso para todos e todas, sem distinção, financiado pela coletividade, com ênfase nos setores mais ricos da sociedade, implantando um projeto-piloto da Tarifa Zero num bairro paulistano, chamado Cidade Tiradentes, bairro esse que na época tinha 200 mil habitantes.